segunda-feira, 5 de dezembro de 2011



ILUSÕES

Os Sonhos não mudam
Os sinos tocam
Badaladas de catedral
O som é falso
Irreal.

Os sinos estão parados
Os reais
A gravação chamou os fiéis
Você lê Baudelaire
Um infiel.

Os sinos falsos te despertam
Interrompem teus sonhos
Maculam a tua ressaca
Teu descanso domingueiro
O rebanho passa.

Famílias e solitários
Senhoras neuróticas
Homens ordinários
Papalvos e confrarias
Com roupas de domingo
Demônios e filhas de Maria.

Velhinhas que querem o céu
Senhores de ócio e negócio
Casais trocados ao léu
Bodegueiros e libidinosos
Homens de boa fé
Políticos e duvidosos.

Justificando os pecados
A falta de amor
Usuras, intrigas
Dissimulando a dor
A posse das raparigas
Como se estivessem no andor.

Obliquamente olham você
Com teus contos
Sempre de esguelha
A tua diferença
Sem ver a tua centelha
Tua vida repleta
Tua alma de poeta
Para alguns, vazia
Para outros, completa.

Os sinos tocam
Para o segundo ato
Gritos no púlpito
O pecado dos ratos
A maldita moral
O corpo repleto
A alma vazia.

O perdão
O purgatório
Como os sinos
Um engano ilusório.

Então!
Você olha distante
E não muda os sonhos.

Jaime – outono 2010. Na província onde no silêncio do interior o diabo brinca com os desejos, luxúrias, intrigas, políticas e usura.






http://www.movimentogotadagua.com.br/


"Eles vieram com uma bíblia e sua religião – roubaram nossa terra, esmagaram nosso espírito... e agora nos dizem que devemos ser agradecidos ao ‘senhor’ por sermos salvos".
Chefe Pontiac



"Desde que a humanidade entrou no período de civilização, tão longe quanto a memória alcança, o povo reza e paga. Ele reza por seus príncipes, por seus magistrados, por seus exploradores e parasitas. Ele reza, como Jesus Cristo, por seus carrascos. Ele reza até mesmo por aqueles que deveriam rezar por ele. E depois ele paga para aqueles por quem reza. Ele paga o governo, a justiça, a polícia, a igreja, a nobreza, a coroa, a renda, o proprietário. Ele paga por seus passos, para ir e vir, para comprar e vender, para beber, comer, respirar, aquecer-se ao sol, nascer e morrer. E implora-lhe o céu para dar-lhe, abençoando o seu trabalho, meios com que pagar cada vez mais. O povo nunca fez outra coisa senão rezar e pagar".
Pierre-Joseph Proudhon

sábado, 22 de outubro de 2011

"Os amiguinhos americanos" - Banski

A TERRA DAS OPORTUNIDADES

"Tudo o que vale a pena ser dito sobre o modo de viver americano posso colocar em trinta páginas. Topograficamente, o país é magnífico — e aterrador. Por que aterrador? Porque em nenhum outro lugar do mundo o divórcio entre homem e natureza é tão completo. Em nenhum lugar encontrei uma trama de vida tão sem graça e monótona como aqui na América. O tédio aqui atinge seu pico.

Estamos acostumados a pensar em nós mesmos como um povo emancipado. Dizemos que somos democráticos, amantes da liberdade, livres de preconceitos e ódio. Aqui é o cadinho, o sítio do grande experimento humano. Belas palavras, cheias de sentimento nobre e idealista. Na verdade, somos uma turba vulgar e opressiva cujas paixões são facilmente mobilizadas por demagogos, jornalistas, charlatães religiosos, agitadores e que tais. Chamar isto aqui de sociedade de povos livres é uma blasfêmia. O que temos a oferecer ao mundo além da superabundante pilhagem que com total indiferença arrancamos da terra sob a maníaca ilusão de que essa atividade insana representa progresso e iluminação? A terra da oportunidade transformou-se em terra do suor e do esforço sem sem sentido."
Henry Miller - "Pesdadelo Refrigerado"



" Se houvesse um homem que ousasse dizer tudo quanto pensa deste mundo, não restaria um palmo quadrado de terra onde ficar. Quando um homem aparece, o mundo cai sobre ele e quebra-lhe a espinha. Restam sempre em pé pilares apodrecidos demais, humanidade supurada demais para que o homem possa florescer. A superestrutura é uma mentira e o alicerce é um medo enorme e trêmulo. Se com intervalos de séculos aparece um homem de olhar desesperado e faminto, um homem que vira o mundo de cabeça para baixo a fim de criar uma nova raça, o amor que ele traz ao mundo é transformado em fel e ele se torna um flagelo. Se de vez em quando encontramos páginas que explodem, páginas que ferem e queimam, lágrimas e pragas, sabemos que elas provêm de um homem com as costas na parede, um homem cuja única defesa restante são suas palavras, e suas palavras são sempre mais fortes que o peso mentiroso e esmagador do mundo, mais fortes que todos os ecúleos e rodas que os covardes inventam para esmagar o milagre da personalidade. Se algum homem ousasse traduzir tudo quanto há em seu coração, expressar o que é realmente sua experiência, o que é realmente sua verdade, penso que o mundo se despedaçaria, que se reduziria a pedacinhos e nenhum deus, nenhum acidente, nenhuma vontade poderia jamais reunir novamente os pedaços, os átomos, os elementos indestrutíveis que entraram na formação do mundo..."
Henry Miller - "Trópico de Câncer"


domingo, 9 de outubro de 2011



EXTREM IDADE

Ele caminha pela casa escura

por entre corredores e cômodos escuros.

No criado mudo

assim como ele na inibição psíquica

suas camisas desbotadas

penduradas como em ganchos num açougue.

Olha seu reflexo na água do bacio

vê sua face

um rosto velho na casa escura

no interregno do pouco para o miserável.

Não ousa sair para o dia na rua

quer ficar olhando o nada

vendo seus quadros

seus antiquários

seus livros

seus filmes europeus

seus hebdomadários anarquistas

nos sarcófagos de madeiras tristes

assim como a cariátide do antigo relógio

olhando o nada.

Assim como ele

indo ao nada

se cuidando prá nada

se poupando prá nada.

Seus caminhos estão parando

na soleira da janela

nas folhas secas que caíram

do seu ipê amarelo.

Seu caminhar esta parado

sentado a beira da cama

olhando o velho baú

abarrotado de reminiscências.

Sombrio pensa em sair

para a luz

para o dia

porém cada vez mais

procura os labirintos

escuros dos aposentos.

Perdeu o prazer dos caminhos

na analogia do poeta

“caminante, no ai camino”.

Breve não caminhará mais

só olhará o breu de sua breve existência

até a luz apagar-se na fresta de sua mente

para por fim esta estrada longa

de caminhos curtos.

Quando começou a caminhar

a pensar

a ver

seus caminhos acabaram

dentro dos corredores escuros

da velha casa...

Sozinho...


Jaime, antes de tomar o remédio – inverno 2011

Para o meu Lódi querido que procura caminhos.

domingo, 11 de setembro de 2011


TRANSGRESSÔR (O ser social)

Alguns só falam em negócios
Ou sobre putas
Ou sobre o ócio
Outros além disso
Falam da rima
Sobre a métrica
Metáforas e dialéticas.

Alguns são confrarias
Prato e bispote
Esbornias e faloforias
Outros tem
O DNA que envenena
Um maluco transgressôr
A maldição da eugenia

Tudo é a confusão
Do perfeito mundo imperfeito
Um diz sim
Outro diz não
O que resulta é a procura
Uns de só o viver
Outros de entender a loucura.

Para o meu eu arredio - Jaime




Como diz no seu vídeo a romancista Chimamanda Adichie (contadora de história e escritora Nigeriana): "O perigo de uma única história”. Ela nos fala como o poder é usado para impor uma única história como se fosse verdade, além da história de Chimamanda, nós próprios sofremos a muito tempo esta situação. Quem ouve apenas uma história de uma pessoa, de uma situação ou de um país, arrisca um desentendimento crítico e até põe em risco seu próprio futuro. Sempre ouço e escuto as diversas opiniões, os dois lados da história para tirar minhas conclusões, o lamentável é que somos constantemente bombardeados por um só tipo de história, principalmente a miopia cultural, perversa e gananciosa dos impérios e suas mídias. Sendo assim, “garimpo” as opiniões, porém é sempre muito difícil manifestá-las. Nosso povo ainda vive desconcertado, acha a ignorância maravilhosa, inclusive em relação a sua própria história. Hoje o que ainda chamam de "papo-cabeça” é a tentativa de diálogo dos pequenos e cada vez mais raros grupos, que fogem da mesma história que o poder e os grupos de interesses insistem em nos enfiar goela abaixo. Em menos de três décadas o chamado papo-cabeça do jovem esclarecido mudou para o cara com desejo de status social, a praga da “celebridade” (palavra infecta) que está na moda e espalha a ansiedade por países como o Brasil, onde a cultura é pobre e o emergente se sobressai, ignorante, mas com dinheiro, um perigo, pois além de sufocar a pessoa de conhecimento, marginaliza a sociedade. É a grande produção do capitalismo, fomentando e promovendo os instintos egoistas do ser humano. Faltando-nos, como falou Jose Saramago: “Pensar, precisamos do trabalho de pensar, parece-me que, sem idéias não vamos a parte nenhuma”. Jaime


ISLÃMOFOBIA

Porque não sofro de islãmofobia, porque não faço das mídias manipuladas o meu estilo de vida, tampouco o meu material de conhecimento, meu tempo de bater palmas para o mocinho John Wayne matador de índios foi aos 12 anos na matinê do Antigo Cine Danubio Azul da velha Cachoeirinha. Pouco tempo depois já andava sozinho pelas ruas de Porto Alegre, descobrindo como eram as tais verdades absolutas, e entendendo que nem tudo que vimos podemos acreditar. Mas isso eram outros tempos, agora temos a "disneyzação" do Prof. Alan Bryman, "vivemos a cultura de consumo" e como explica Jean Baudrillard no seu estudo da comunicação das mídias na sociedade e na cultura contemporânea, ou a “insatisfação do eu consigo mesmo” como diz o Sr. Bauman, onde pessoas desqualificam suas formas de vida e vivem um universo midiático e de consumo. O que falo a seguir sobre o Oriente Médio, é uma refutação de uma mídia perversa, minha visão garimpada com uma realidade que não seja aquela que os americanos e seus aliados (desde o Nakba dos anos 40), querem passar para nós. A Liga Árabe compreende 22 estados com rebeliões em quase todos, as coisas não são tão simples como pensam os ocidentais e muito menos para quem não tem conhecimento da sua política e sua cultura. Tem que se conhecer a sociologia e a antropologia Árabe (este o grande erro ocidental que tenta impor seu modelo), muitos do seu povo nem tem consciência de nação, nem povo, pensam apenas em termos de família, clã e religião como na Líbia, tudo isso com cisões religiosas, étnicas e tribais. Em muitos lugares o que tem a uni-los é um chefe e a consciência religiosa com a mão de ferro. Até uma intervenção militar internacional para proteger o povo é algo dificílimo (termina em guerra civil). Em meio à tantas diferenças é completamente odioso marginalizar e vilipendiar um povo com uma história tão antiga, que ao meu ver, temos muito mais pecados do que eles. Em nome de deus já matamos, saqueamos e caluniamos muito mais. Não vai ser por causa de grupos radicais que vamos generalizar um povo. Se assim fosse, eu não poderia gostar dos alemães por causa de Hitler, dos espanhóis por causa do Torquemada ou de Pizarro, dos Americanos por causa da Ku Klux Khan, de seu racismo e seus eugenistas. Confesso, tenho muito, mas muito mais temor destes impérios colonizadores e saqueadores do que o povo árabe. Quem tem nos sacaneado, roubado, torturado, criado ditaduras e toda a espécie de maldade são estes impérios. Quem foi que acabou com o Paraguai que era um o país mais promissor da América Latina com a malandragem da tríplice aliança? Quem foi que explorou toda a América Latina, financiando ditaduras e relegando povos a miséria, a violência e ao abandono? Quem levou e leva todas as nossas riquezas e sobretaxa as deles num protecionismo safado? Quem enche de missionário nossas florestas, roubando nossa biodiversidade, estrupando nossos índios e dizendo que a Amazonia é deles? Nunca ví um árabe aqui cometer tamanhas safadezas, os únicos árabes que conheço no Brasil, são ainda iguais aos antigos mascates , que no sul eram apelidados de "prestação"(décadas atrás). Traziam roupas baratas para vender em nossas portas e nossos pais pagavam como podíam. Nunca vi crimes, escândalos, ou qualquer outro delito de um árabe no Brasil, o Maluf é brasileiro, o doutor Roger Abdelmassih tambem é brasileiro e fugiu, protegido como Maluf pelo nossos brilhantes “homens” do “judiciário” brasileiro, o mesmo “judiciário” que inocentou o Naji Nahas (este não é brasileiro), que sacaneou a bolsa de valores com a cumplicidade dos nossos patriotas, os quais eu acho que são da mesma quadrilha do “judicário”. Temos uma colonia árabe muito grande no Brasil, e desde o descobrimento parece-me, que é o único povo que não temos nada a falar ou reclamar, até fizemos piadas sobre eles e até já contei para eles e nunca fui atacado, nem ameaçado com bombas (também nunca fui ameaçado pelo Irgun ou pelo Lehi). Mas dos americanos temos de sobra, e só não falamos mais porque sua mídia de fantasia nos ilude, até o Zé Carioca eles criaram para nos tapear, mas o que fazer, agora mesmo temos 50 mil, eu falei 50 mil ou mais brasileiros que foram ver o casamento do príncipe na Inglaterra. Pois é, o meu saudoso avô João dizia: que o mundo começou com sete bôbos, morreu um, ficou quinze, quando menino eu não compreendia a matemática, mas meu avô explicou, é que o número de bôbos se multiplica feito ratos. Assim sempre vamos ter alguém (ou um rato), abanando uma bandeirinha para o carrasco, esperando eles no aeroporto, mesmo que eles nos expulsem quando descemos no país deles, afinal nós somos os colonizados, por isso devemos odiar tudo o que eles odeiam, até dos personagens de desenho do Aladim, afinal os Árabes são vilipendiado 24 horas pelos filmes de Hollywood. E confesso, meu medo maior é do Tea Party, do Bush ou do republicano Peter King. sds. Jaime







Vejam abaixo, a melhor análise que li sobre a revolta do mundo árabe, publicada na revista Piauí em junho de 2011 por Perry Anderson, que é historiador inglês e professor na Universidade da Califórnia.

Explosões em sequência
A liberdade precisa ser reconectada com a igualdade. Sem essa conexão, as rebeliões no mundo árabe podem facilmente murchar numa versão parlamentar da velha ordem, incapaz de responder à energia e às tensões sociais explosivas que lhes deram origem.


Por Perry Anderson

A revolta árabe de 2011 pertence a uma classe rara de acontecimentos históricos: a da concatenação de levantes políticos, um deflagrando o outro em toda uma região do mundo. Houve apenas três precedentes: as guerras de libertação das colônias hispano-americanas de 1810–25; as revoluções européias de 1848–49; e a queda dos regimes no bloco soviético em 1989–91. Cada um deles foi historicamente específico de seu tempo e lugar, tal como serão as explosões em cadeia no mundo árabe. Desde que se acendeu o fósforo na Tunísia, em dezembro de 2010, e as chamas se espalharam para o Egito, Bahrein, Iêmen, Líbia, Omã, Jordânia e Síria, não se passaram mais de três meses; qualquer previsão sobre os resultados é prematura.
Na lista dos levantes antigos, nenhum durou menos de dois anos. O mais radical acabou em completa derrota, por volta de 1852. Outros dois triunfaram, embora os frutos da vitória tenham sido muitas vezes amargos: bem diversos das esperanças de um Simón Bolívar ou de uma Bärbel Bohley. O destino final da revolta árabe pode ser parecido com qualquer um deles, mas também pode ser sui generis.
Dois aspectos fizeram com que o Oriente Médio e o norte da África ocupassem uma situação à parte no universo político contemporâneo. O primeiro é a duração e a intensidade do domínio ocidental da região, durante todo o século passado. Do Marrocos ao Egito, o controle colonial do norte da África repartiu-se entre a França, a Inglaterra e a Itália antes da Primeira Guerra Mundial, enquanto o Golfo virou uma série de protetorados britânicos, com Áden constituindo um posto extremo da Índia britânica. No pós-guerra, no último vagão do butim territorial europeu, os despojos do Império Otomano ficaram com a Inglaterra e a França, formando o que foi denominado, nas suas pranchetas e esquadros, Iraque, Síria, Líbano, Palestina e Transjordânia.
A colonização formal demorou a chegar a boa parte do mundo árabe. A África Subsaariana, o Sudeste da Ásia, o subcontinente indiano, para não falar da América Latina, foram conquistados muito antes que a Mesopotâmia ou o Levante. Diferentemente de qualquer dessas zonas, porém, no mundo árabe a descolonização formal foi acompanhada por uma sequência praticamente ininterrupta de guerras e intervenções imperiais no período pós-colonial.
As intervenções começaram cedo, com a expedição inglesa para reinstalar um regente fantoche, em 1941, e se multiplicaram com a edificação de um estado sionista sobre o túmulo da revolta palestina, esmagada pela Inglaterra em 1938–39. Daí em diante, um poder colonial em expansão, atuando às vezes como sócio, às vezes por procuração, mas com frequência crescente como iniciador de agressões regionais, combinou-se com a afirmação dos Estados Unidos como o senhor do mundo árabe, no lugar da França e da Inglaterra.
Desde a Segunda Guerra Mundial, cada década tem tido sua colheita de violência, seja por meio de suserania, seja através da ocupação. Nos anos 40, houve a nakba desencadeada por Israel na Palestina. Nos anos 50, o ataque anglo-franco-israelense ao Egito e os desembarques americanos no Líbano. Nos 60, a Guerra dos Seis Dias de Israel contra o Egito, a Síria e a Jordânia. Nos anos 70, a Guerra do Yom Kippur. Nos 80, a invasão israelense do Líbano e o esmagamento da Intifada palestina. Nos anos 90, a Guerra do Golfo. Na última década, a invasão e ocupação americana do Iraque. Na atual, o bombardeio da Líbia pela Otan, agora em 2011.
Nem todo ato de beligerância nasceu em Washington, Londres, Paris ou Tel-Aviv. Conflitos militares de origem local também foram comuns: a guerra civil no Iêmen, nos anos 60, a tomada do Saara ocidental pelo Marrocos, nos 70, o ataque ao Irã pelo Iraque, nos 80, e a invasão do Kuwait pelo Iraque, nos 90. Mas a conivência, ou envolvimento ocidental, raramente esteve ausente. Pouca coisa andou na região sem o atento olho imperial e – quando necessário – sem a aplicação de força ou dinheiro.
O motivo para o grau excepcional de vigilância e interferência euro-americana no mundo árabe é simples. Por um lado, ele é o repositório da maior concentração de reservas de petróleo da Terra, vitais para as economias do Ocidente. Essa condição gerou um vasto arco de desdobramentos, desde bases aéreas, navais e de espionagem em todo o Golfo, com um braço avançado no Iraque, até a profunda infiltração dos órgãos de segurança egípcios, jordanianos, iemenitas e marroquinos.
Por outro lado, o mundo árabe é a moldura na qual se insere Israel, que precisa ser protegido porque os Estados Unidos abrigam o lobby sionista, enraizado na comunidade imigrante mais poderosa do país – que nenhum presidente ou partido ousa afrontar –, e a Europa purga a culpa pela Shoah. Como Israel, por sua vez, ainda é uma potência ocupante que depende do auxílio ocidental, e os seus patrocinadores viraram alvo da retaliação de grupos islâmicos (que praticam o terror tal qual o Irgun e o Lehi no seu tempo), o controle da região tornou-se cada vez mais estrito. Nenhuma região do mundo tem merecido o mesmo grau de atenção da hegemonia imperial.
O segundo aspecto distintivo tem sido a longevidade e a intensidade das variadas tiranias que, desde a descolonização formal, rapinam o mundo árabe. Nos últimos trinta anos, regimes democráticos, na forma entendida pela organização Freedom House, espalharam-se da América Latina à África Subsaariana e ao Sudeste da Ásia. No Oriente Médio e no norte da África, porém, não ocorreu nada análogo. Ali, déspotas de toda catadura têm se mantido no poder, independentemente das mudanças de tempo ou circunstância.
A família Al Saud – no melhor sentido siciliano do termo –, que tem sido o instrumento central do poder americano na região desde o seu acordo com Roosevelt, manda na península, sem contestação, há quase um século. Os xeques amestrados do Golfo e de Omã, sustentados ou instalados pelo Raj, o sistema inglês na Índia, têm tanta necessidade de ouvir a opinião de seus súditos quanto os seus vizinhos wahabitas, colaboradores de Washington. As dinastias da Jordânia e do Marrocos – a primeira, criatura dos ingleses; a segunda, herança do colonialismo francês – passam o poder a seus herdeiros há três gerações de autocratas, junto com uma fachada parlamentarista. Tortura e assassinato são a rotina desses regimes, os melhores amigos do Ocidente na região.
Tampouco foi diferente nas chamadas repúblicas, cada qual uma ditadura tão brutal quanto a outra, e muitas delas não menos dinásticas que as próprias monarquias. Também nelas a longevidade coletiva dos governantes não teve paralelo em lugar nenhum: Kadafi no poder por 41 anos; Assad, pai e filho, 40; Saleh, 32; Mubarak, 29; Ben Ali, 23. Somente os militares argelinos, numa presidência rotativa à moda dos generais brasileiros, fugiram dessa norma, mas respeitaram todos os demais princípios de opressão.
Na postura externa, esses regimes foram menos uniformemente subservientes ao imperialismo hegemônico. A ditadura egípcia, salva de uma debacle militar, em 1973, graças aos Estados Unidos, foi desde então um fiel peão de Washington, tendo menos independência operacional em relação aos americanos do que o reino saudita. O governante iemenita foi comprado numa pechincha para atuar na “guerra contra o terror”. O tunisiano cultivou patrões na Europa, sobretudo na França, mas não só nela.
Os regimes argelino e líbio, gozando da alta renda proporcionada pelos recursos naturais, tiveram uma margem maior de autonomia, embora demonstrando um padrão crescente de obediência – exigida na variante argelina para conseguir a aprovação ocidental ao esmagamento da oposição islâmica, e na variante líbia para expiar seu passado e fazer lucrativos investimentos na Itália.
A exceção significativa foi a Síria, que não poderia se submeter sem a retomada das Colinas de Golan – bloqueada por Israel – e receosa em deixar o mosaico fóssil do Líbano cair totalmente nas mãos do dinheiro saudita e da espionagem ocidental. Mas até mesmo essa exceção foi intimada, sem maiores dificuldades, a cerrar fileiras na Operação Tempestade no Deserto.
As duas vigas mestras da região – a dominação contínua pelo sistema imperial americano e a ausência contínua de instituições democráticas – estão conectadas. A conexão não é uma simples derivação. Onde a democracia é considerada uma ameaça ao capital, os Estados Unidos e seus aliados nunca hesitaram em removê-la, como ilustra o destino de Mossadegh, de Arbenz, de Allende ou, atualmente, de Jean-Bertrand Aristide. No sentido inverso, onde a autocracia é essencial, ela é bem preservada.
Os despotismos da Arábia, baseados em cambalachos tribais e no trabalho suado de imigrantes, são engrenagens estratégicas da Pax Americana, nas quais o Pentágono intervém de supetão quando é necessário protegê-las. As ditaduras republicanas, ou monárquicas, que pairam sobre grandes populações urbanas noutros pontos da região, são expedientes um pouco diferentes, mais de ordem tática. Essas tiranias têm sido auxiliadas e apoiadas pelos Estados Unidos, mas não foram uma criação americana exclusiva. Todas têm raízes nas sociedades locais, ainda que sejam bem regadas por Washington.
Segundo o famoso dito de Lênin, a república democrática é a casca ideal para o capitalismo. A partir de 1945, nenhum estrategista ocidental discordou da afirmação. O imperium euro-americano preferiria, em princípio, lidar com democratas árabes a tratar com ditadores, desde que fossem igualmente respeitosos da sua hegemonia. A partir da década de 80, tal respeito raramente faltou nas regiões recém-democratizadas.
Por que o mesmo processo não se aplica ao Oriente Médio e ao norte da África? Essencialmente, porque os Estados Unidos e seus aliados têm motivos para recear que, devido a sua longa história de violência imperial na área e às permanentes demandas de Israel, o sentimento popular possa não lhes apresentar um reconforto eleitoral semelhante ao de outras regiões.
Uma coisa é construir um regime cliente à força de baionetas, e pastorear votos suficientes para sustentá-lo, como foi feito no Iraque. Outra coisa são eleições mais livres, como descobriram os generais da Argélia e os chefes da Fatah. Em ambos os casos, confrontados com a vitória democrática de forças islâmicas consideradas pouco sensíveis a pressões ocidentais, a Europa e os Estados Unidos aplaudiram a anulação das eleições e a repressão dos vencedores. As lógicas imperial e ditatorial continuam entrelaçadas.
Esse é o quadro no qual a revolta árabe finalmente irrompeu, numa concatenação facilitada pelos dois grandes fatores de unidade da região: a língua e a religião. O mote dos levantes foram as demonstrações em massa de cidadãos desarmados, que em quase toda parte enfrentaram com coragem exemplar a repressão a gás, água e chumbo.
De país em país, a reivindicação principal ecoou num grito estrondoso: Al-Sha’b yurid isquat al-nizam – “O povo quer o fim do regime!” O que as multidões nas praças e ruas querem, essencialmente, é liberdade política. A democracia, uma palavra bem conhecida – todos os regimes a utilizam amplamente –, mas uma realidade desconhecida, virou o denominador comum dos vários movimentos nacionais.
Raramente articulado a um conjunto de instituições, o poder de atração da reivindicação de democracia surgiu mais como uma negação do status quo – por ser tudo que a ditadura não é – do que da afirmação do seu conteúdo. Punir a corrupção nos altos escalões do velho regime aparece com mais destaque do que as particularidades da Constituição a ser feita. Nem por isso a dinâmica dos levantes ficou menos clara. Seu objetivo é, no mais clássico dos sentidos, puramente político: liberdade.
Mas por que agora? O elenco odioso de regimes permaneceu inalterado por décadas. A deflagração das revoltas não se explica pelos seus objetivos. Nem pode ser atribuída apenas a novos canais de comunicação: a difusão da Al Jazira, os aparecimentos do Facebook ou do Twitter facilitaram, mas não criaram o novo espírito de insurgência.
A fagulha que iniciou o incêndio sugere a resposta. Tudo começou com a morte, provocada pelo desespero, de um vendedor de verduras empobrecido num vilarejo no interior da Tunísia. Na raiz da comoção que sacode o mundo árabe havia pressões sociais vulcânicas: desigualdade social, aumento do custo dos alimentos, falta de moradia, ausência de emprego para a juventude instruída – e não instruída – numa pirâmide demográfica sem paralelo no mundo. Em poucas regiões a crise social é tão aguda, e tão evidente é a ausência de um modelo de desenvolvimento capaz de integrar as novas gerações.
Até agora, no entanto, há um desencontro quase total entre o conteúdo social da revolta árabe e os seus objetivos políticos. Em parte, isso é reflexo da composição dos principais participantes. Nas grandes cidades – à exceção de Manama, a capital do Bahrein – não foram os pobres que, em geral, acorreram às ruas majoritariamente. Os trabalhadores não organizaram uma longa greve geral. Os camponeses estão quase ausentes.
É esse o efeito de décadas de repressão policial, e da eliminação de qualquer organização coletiva dos desfavorecidos. O seu ressurgimento levará tempo. Mas o desencontro é também efeito do limbo ideológico em que a sociedade foi deixada nessas mesmas décadas – um período de descrédito do socialismo e do nacionalismo árabes e de neutralização do confessionalismo radical, que deixou um islamismo aguado como único passe-partout. Nessas condições criadas pela ditadura, o vocabulário da revolta só se pode concentrar na ditadura – na queda da ditadura – como discurso político, e em nada mais.
A liberdade precisa ser reconectada com a igualdade. Sem essa conexão, as rebeliões podem facilmente murchar numa versão parlamentar da velha ordem, tão incapaz de responder à energia e às tensões sociais explosivas quanto as oligarquias decadentes do período de entreguerras. A prioridade estratégica para a reemergência da esquerda no mundo árabe deve ser a luta pelas formas de liberdade política que permitirão que essas pressões sociais encontrem a expressão coletiva adequada.
Isso significa, por um lado: a abolição geral de toda a legislação de emergência; a dissolução do partido dirigente ou a deposição da família governante; a limpeza do aparelho do Estado de todos os ornamentos do antigo regime; o julgamento dos seus líderes.
E significa, por outro lado, depois de varrer os restos do antigo regime, prestar uma atenção cuidadosa e criativa aos detalhes das Constituições a serem escritas. Nesse ponto, as exigências-chave são: liberdade total de expressão e organização cívica e sindical; sistemas eleitorais sem distorção – ou seja, proporcionais, e não do tipo em que só o mais votado se elege; presidentes sem plenos poderes; proibição do monopólio, estatal ou privado, dos meios de comunicação; e o acesso, garantido em lei, dos desfavorecidos aos benefícios públicos.
Somente assim as reivindicações de justiça social que deflagraram a revolta podem dar origem à liberdade coletiva necessária para a sua conquista.
Outra ausência se faz notar no levante. Na mais famosa das revoltas concatenadas, a europeia de 1848–49, não só dois, mas três tipos de exigências se entrelaçaram: políticas, sociais e nacionais. O que dizer da última, a árabe, de 2011? Até o momento, os movimentos de massa não produziram uma só demonstração antiamericana, ou sequer anti-israelense. O descrédito histórico do nacionalismo árabe, com o fracasso do nasserismo no Egito, é, sem dúvida, uma razão para isso. Outra razão é o fato de que a subsequente resistência ao imperialismo americano foi identificada com regimes – Síria, Irã, Líbia – tão repressivos quanto os que se entenderam com ele. Ainda assim, é notável que o anti-imperialismo seja o cachorro que não latiu – ou não latiu até agora –no pedaço do mundo onde o poder imperial é mais visível. Isso pode continuar?
Os Estados Unidos podem assumir uma visão dos acontecimentos que, até agora, é confiante e otimista. No Golfo, o levante no Bahrein, que poderia ter posto em risco seu Q.G. naval, foi esmagado por uma intervenção contrarrevolucionária na melhor tradição de 1849, com uma impressionante demonstração de solidariedade interdinástica. Os reinos saudita e hashemita aguentaram firmes.
O bastião iemenita da batalha contra o salafismo parece mais periclitante, mas o ditador de turno é dispensável. No Egito e na Tunísia, os governantes se mandaram, mas a hierarquia militar do Cairo, com suas excelentes relações com o Pentágono, continua intacta. E a grande força civil emergente em ambos os países é um islamismo domesticado.
Anteriormente, a perspectiva de a Irmandade Muçulmana – ou de suas sucursais regionais – entrar para o governo teria provocado grande alarme em Washington. Mas o Ocidente dispõe agora de um modelo tranquilizador na Turquia, aplicável nas terras árabes, que oferece o melhor dos mundos políticos. O Partido da Justiça e Desenvolvimento da Turquia mostrou o quão leal à Otan e ao neoliberalismo ele pode ser. E mostrou também que é capaz de aplicar doses certas de intimidação e repressão, mesmo numa democracia piedosa e liberal, brandindo o porrete e o Alcorão. Se um Erdoğan puder ser encontrado no Cairo ou em Túnis, Washington terá todos os motivos para ficar satisfeito com a sua troca por Mubarak e Ben Ali.
Nessa perspectiva, a intervenção militar na Líbia pode ser considerada a cereja no bolo – servindo, simultaneamente, para polir as credenciais democráticas do Ocidente e se livrar do mais recente e embaraçoso recruta da “comunidade internacional”. Sendo mais um luxo do que uma necessidade para o poder global americano, a iniciativa do ataque da Otan veio da França e da Inglaterra, reencenando, como numa máquina do tempo, a expedição de Suez em 1956.
Novamente, Paris tomou a iniciativa, para limpar Sarkozy de suas intimidades com Ben Ali e Mubarak, e também para deter a sua desastrosa queda nas pesquisas de opinião. Londres entrou em forma para atender ao desejo de Cameron em imitar Blair. O Conselho de Cooperação do Golfo e a Liga Árabe deram cobertura ao empreendimento numa mansa imitação de Israel em 1956.
Mas Kadafi não é Nasser, e Obama, dessa vez com poucos motivos para temer as consequências, pôde acompanhar a iniciativa. O protocolo de hegemonia exigiu que os Estados Unidos assumissem o comando nominal, permitindo que guerreiros como a Bélgica e a Suécia mostrassem o seu valor aéreo. Para o pessoal da era Clinton que permaneceu no atual regime americano, um bônus adicional será a reabilitação da intervenção humanitária, depois dos reveses no Iraque.
Os meios de comunicação e a intelectualidade francesa, como era de se prever, extasiaram-se com a restauração da honra da pátria nesse gênero de empreendimento. Mas mesmo nos Estados Unidos o cinismo está disseminado: o molho para o ganso líbio, visivelmente, não é o mesmo para o pato de Bahrein, ou qualquer outro.
Até o momento, nada disso alterou o panorama da revolta. Cautela com o poder do hegemônico, preocupação com aspectos nacionais, simpatia pelos rebeldes líbios, esperança de que o episódio acabe logo – tudo isso se combinou para emudecer as reações ao mais recente bombardeio pelo Ocidente. Mas não é de se esperar que a questão nacional continue indefinidamente separada da questão política e da social.
Para o mundo muçulmano a leste da agitação, as guerras americanas no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão ainda estão por serem vencidas, e o bloqueio do Irã ainda está longe da sua conclusão lógica. E, no centro da agitação, a ocupação da Cisjordânia e o bloqueio de Gaza continuam como antes. Até o mais moderado dos regimes democráticos pode achar difícil se isolar desses teatros de prepotência imperial e de selvageria colonial.
A maioria das nações do mundo árabe – exceto Egito e Marrocos – são criações artificiais do imperialismo ocidental. Mas, assim como na África Subsaariana e alhures, as origens coloniais não impediram que se cristalizassem identidades no interior das fronteiras artificiais desenhadas pelos colonizadores. Nesse sentido, toda nação árabe tem hoje uma identidade coletiva tão real e problemática quanto qualquer outra.
Há uma diferença, porém. Língua e religião, entrelaçadas em textos sagrados, foram – e são – historicamente fortes para caracterizar uma demarcação cultural que extrapola a imagem de cada estado-nação em particular. Esse ideal forjou o nacionalismo árabe – e não egípcio, iraquiano ou sírio.
Houve então a ascensão, a corrupção e o fracasso do nasserismo e do baathismo. Eles não ressuscitarão. Mas o impulso que fez com que existissem terá de ser recuperado, se a revolta se tornar uma revolução no mundo árabe. A liberdade e a igualdade precisam ser reconectadas. Mas, sem fraternidade, numa região tão difusamente maltratada e interligada, elas correm o risco de azedar.
Dos anos de 1950 em diante, pagou-se um preço muito alto, em termos de egoísmo nacional, para se obter algum progresso no Oriente Médio e no norte da África. O que se precisa não é a caricatura de solidariedade oferecida pela Liga Árabe, instituição cuja folha corrida de traições e de fracassos rivaliza com a da Organização dos Estados Americanos, a OEA, nos dias em que Fidel Castro, com toda a razão, a chamava de Ministério das Colônias americano. É necessário que exista um internacionalismo árabe generoso, capaz de visualizar – num futuro distante, quando o último xeque for derrubado – uma distribuição equitativa da riqueza do petróleo, proporcional à população, e não manter a monstruosa e arbitrária opulência de uns poucos, e a indigência desesperada de tantos outros.
No futuro mais imediato, a prioridade é simples: uma declaração conjunta de que o tratado abjeto que Sadat assinou com Israel está morto e enterrado –um tratado que arrasou os seus aliados em troca de um arranjo que não dá ao Egito sequer a soberania para mover seus soldados em seu próprio território; um tratado cujas implicações referentes à Palestina, desprezíveis em si mesmas, Israel nem sequer simulou cumprir. Eis aí o teste decisivo da recuperação da dignidade democrática árabe.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Kim e o Circo



RESPEITÁVEL PÚBLICO


No circo de lonas costuradas
De panos e remendos coloridos
Caminhava o marombeiro ativo
Um carlitos pobre das estradas

Corriam povoados de mídias e muros
Na agonia da perfeição
Argúcias para a arte em extinção
A troupe mambembe sem futuro

Dionísios, mágicos e cabotinos
Mostravam a plateia pobre e pueril
Esforços de poses, risos e desatinos

No espetáculo de ensaiados passos
Nariz vermelho, trejeito senil
Ainda imperava o velho palhaço.

Para os pequenos circos que passam na minha cidade do interior, a magia da arte popular que insiste em não morrer.
Jaime.

segunda-feira, 25 de julho de 2011


Samuel Beckett e Albert Camus, dois prêmios nobel de literatura, são leituras obrigatórias para quem faz uma opção do absurdo como literatura. Beckett notabilizou-se no teatro do absurdo e Camus nos mostra a filosofia do absurdo em seus ensaios e romances.

A comparação está entre a peça de Beckett, “Esperando Godot” e o romance “O Estrangeiro” de Camus, ambas mostram a falta de sentido da vida humana, nosso universo irracional e uma crítica de nosso inútil esforço para entender o significado dos acontecimentos da vida humana.

“Esperando godot” é a espera de algo que nunca vem, assim como o homem à espera de Deus que nunca chega e termina em coisa nenhuma, deixando para os personagens, Vladimir e Stragon, uma decisão: apenas ir vivendo num mundo irracional. Em “O Estrangeiro”, o personagem Mersault vive numa descrença, num tédio e ao mesmo tempo ele age de maneira indiferente a tudo: a todas as normas sociais, impermeável a todos os valores morais e ao mundo que o rodeia. Um detalhe interessante, foi escrito por Camus em “As Cartas a um Amigo Alemão”, escritas durante a guerra. Nelas, Camus diz: “Acho que o mundo não tem sentido, mas sei que algo nele tem sentido, e é o homem, porque é o único ser que reclama um sentido”.
Jaime



Samuel Beckett foi um dos fundadores do teatro do absurdo, é considerado um dos principais autores do século 20. Sua obra foi traduzida para mais de trinta idiomas.

Beckett nasceu em 1906 em Foxrock, perto de Dublin numa família burguesa e protestante, em 1927 graduou-se em literatura no Trinity College de Dublin, onde estudou também italiano e francês.

Em 1928, foi lecionar em Paris onde conheceu James Joyce, de quem se tornou amigo. Durante o ano de 1930, Beckett lecionou na Irlanda. Nessa época escreveu o estudo crítico "Proust", comentando a obra do grande escritor francês.

No ano seguinte Samuel Beckett fixou residência em Paris e escreveu a sua primeira novela, "Dream of Fair to Middling Women", que seria publicada somente depois de sua morte.

Em 1933, voltou a Dublin por motivos familiares, mas retornou a Paris em 1938. Nessa época, levou de um estranho uma facada no peito e ficou gravemente ferido.

No início da Segunda Guerra Mundial, Beckett vinculou-se à Resistência Francesa, juntamente com sua esposa, Suzanne Deschevaux-Dusmenoil. Em 1942, foi obrigado a fugir para Vichy, onde escreveu parte da novela "Watt". É no pós-guerra que vive o período mais intenso da sua produção literária.

A partir de 1945, o seu idioma literário passou a ser o francês. Entre 1951 e 1953 escreveu uma trilogia ("Molloy", "Malone Morre" e "L'Innommable"), cujo tema é a solidão do homem. Com "Esperando Godot", Beckett iniciou, ao mesmo tempo que Ionesco, o teatro do absurdo. Depois começa a traduzir os seus textos para inglês e volta a escrever também nesta língua. Constrói uma obra dupla, bilíngue, cada vez mais depurada.

Posteriormente ainda escreveu, além de algumas obras narrativas, diversas peças teatrais, como "Fim de Festa", "Ato sem Palavras" e "Os Dias Felizes".

Em 1969, Beckett ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, distribuindo o dinheiro pelos amigos. Durante a vida escreveu poemas e textos em prosa, como romances, novelas, contos e ensaios, além de textos para o teatro, o cinema, o rádio e a televisão.

Samuel Beckett morreu em 1989, cinco meses depois de sua esposa. Foi enterrado no cemitério de Montparnasse.

[três poemas de amor]

cascando

1

fosse apenas o desespero da
ocasião da
descarga de palavreado

perguntando se não será melhor abortar que ser estéril

as horas tão pesadas depois de te ires embora
começarão sempre a arrastar-se cedo de mais
as garras agarradas às cegas à cama da fome
trazendo à tona os ossos os velhos amores
órbitas vazias cheias em tempos de olhos como os teus
sempre todas perguntando se será melhor cedo de mais do que nunca

com a fome negra a manchar-lhes as caras
a dizer outra vez nove dias sem nunca flutuar o amado
nem nove meses
nem nove vidas

2

a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo para as últimas vezes
últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei

palavras rançosas a resolver outra vez no coração
amor amor amor pancada de velha batedeira
pilando o sono inalterável
das palavras

aterrorizado outra vez
de não amar
de amar e não seres tu
de ser amado e não ser por ti
de saber e não saber e fingir
e fingir

eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem

3

a não ser que te amem

Samuel Beckett
(tradução de Miguel Esteves Cardoso in As Escadas não têm Degraus 3, livros Cotovia - Março de 1990)

Peças, romances, novelas, contos, prosa, ensaios, poesias, a produção Becketiana é um ícone, uma veemente crítica a modernidade. Beckett é dos meus autores preferidos, com seu especial sendo sardônico de humor negro, é uma língua suja engenhosa, fala da escória, das putas e dos canalhas com muito talento.

Beckett mostra o sujo e joga limpo, não me engana, não me tapeia e vai aonde muitos autores não se atrevem com medo de cair ou escorregar no lugar comum. Ele é o rei da nossa grande realidade, da metáfora, da ironia e do sarcasmo, um mestre que nos desnuda inteligentemente e mostra o existencialismo, o trágico, a solidão, o pessimismo e o absurdo da condição humana, o resto é conto de fadas para iludir nossas vidas. Porém, não se iludam, porque é preciso estar preparado para o estilo Beckettiano, nele não existe meios termos, ou você mata a obra ou descobre o olimpo do prazer literário.

Eu, além do prazer, curto o sentido de fugir do lugar comum, espiando pela ótica de Beckett o contrário do bom senso e as doutrinas que o comum tenta me inculcar. O interessante em Beckett é que no início a literatura parece tola, mas aos poucos você percebe que até o silêncio das falas dos personagens não são simples inerrupções, são para refletir, respirar, pensar, entender o poderoso simbolismo subjacente da obra.

Se os personagens estiver esperando Godot na rua, esperam alguém que lhes dê o sentido da vida, se estivessem numa prisão, estariam esperando pela liberdade, todos nós estamos esperando alguém que responda nossas angustiantes perguntas, todos nós somos personagens de Beckett.
Jaime

“Fail. Fail again. Fail better”.

“Falhar. Falhar de novo. Falhar melhor”.
Samuel Beckett

"De todas as definições sobre Beckett, para mim a melhor foi como Harold Pinter, outro grande representante do Teatro do Absurdo (nobel em 2005), assim o definiu:
Quanto mais longe ele vai mais bem me faz. Não quero filosofias, panfletos, dogmas, credos, saídas, verdades, respostas, nada a preço de saldo. Ele é o escritor mais corajoso e implacável que aí anda e quanto mais me esfrega o nariz na merda mais reconhecido lhe fico. Não se põe a gozar com a minha cara, não está a levar-me à certa, não me vem com piscadelas de olho, não me oferece um remédio nem um caminho nem uma revelação nem um balde cheio de migalhas, não me está a vender nada que não queira comprar, está-se borrifando para se eu compro ou não, não tem a mão sobre o coração. Bom, vou comprar-lhe a mercadoria toda, de fio a pavio, porque ele espreita debaixo de cada pedra e não deixa nenhum verme sozinho. Faz nascer um corpo de beleza. A sua obra é bela."
Harold Pinter, 1954


Samuel Beckett traz mais uma vez o silêncio, “o abismo de consciência” que recai sobre a solidão da fantasiosa sociedade burguesa ocidental, palco das críticas do Teatro do Absurdo.
“Resta pouco a dizer numa última tentativa de sofrer menos.”




Seus temas destacam o isolamento do homem em ambientes estranhos, o absurdo da vida e do universo e o exame da moral e da condição humana. A obra desse grande romancista, dramaturgo, ensaísta e filósofo, abordou a alienação e o desencanto do homem no pós-guerra.

Com o falecimento do pai em combate na Primeira Guerra Mundial, menos de um ano depois do seu nascimento no dia 7 de Novembro de 1913, sua mãe levou-o, junto com a família, para morar num bairro pobre de Argel, capital da Argélia. Aluno muito inteligente, ganhou uma bolsa de estudos para o liceu de Argel, de onde foi para a Universidade de Argel a fim de estudar Filosofia.

Desportista dedicado e exímio futebolista, suas ambições de atleta foram, todavia, frustradas pela tuberculose. Albert Camus direcionou então sua atenção para a literatura. Estudou os clássicos franceses e a política de esquerda e atuou durante algum tempo no Partido Comunista Argelino, em 1935, até ir trabalhar como jornalista para o jornal socialista Alger-Republicain. A paixão pelo teatro o levou a escrever, produzir e atuar no Théâtre du Travail. Apesar de só ter sido produzida em 1945, sua peça Calígula foi escrita pouco antes de suas obras mais admiradas.

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, aos 25 anos de idade foi para a França juntar-se ao movimento de resistência à ocupação alemã, trabalhando como editor do diário parisiense clandestino Combat. Foi nessa época tumultuosa que escreveu seu primeiro e mais celebrado romance O Estrangeiro (publicado em 1942). Nele, o jovem argelino Meursault é levado a julgamento por matar um árabe. Entretanto, não é a natureza do crime que ofende o tribunal, mas sua recusa em sentir remorso. Meursault é considerado subumano, um perigo para a sociedade por sua não conformidade. Seu desapego e sua alienação emocional acabam levando-o à morte. A sensação de absurdo e a falta de sentido do mundo são temas recorrentes em Camus, pelo que acabaria sendo rotulado de existencialista, ao lado de seu então amigo Jean-Paul Sartre.

O ensaio filosófico O Mito de Sísifo (seu primeiro ensaio publicado em 1942) deu continuidade à sua exploração do absurdo e da inútil busca humana de significado num mundo incompreensível. Camus nos apresenta vários dualismos paradoxais, como a asserção de que a vida tem um grande valor, porém é banalizada pela morte, que a priva de significado. Sua conclusão é de que, para sobrevivermos, é melhor deixar de lado as ambições e concentrarmo-nos no cotidiano.

A fé persistente de Camus na bondade intrínseca do homem é, no entanto, mais bem retratada em seu segundo romance, publicado em 1947, intitulado A Peste, um relato alegórico da ocupação nazista da França em que os cidadãos da cidade argelina de Oran são assolados por uma praga de ratos e isolados do mundo exterior. O triunfo final do espírito humano é o resultado da decisão unilateral de trabalhar juntos em vez de buscar soluções pessoais.
Camus examinou a ideia de rebelião em seu longo ensaio O Homem Revoltado (publicado em 1951). Na década de 1950, dedicou também boa parte de seu tempo a questões de direitos humanos, defendendo a abolição da pena capital em todo o mundo e denunciando a repressão soviética da Revolução Húngara em 1956. Nesse mesmo ano publica seu último romance, A Queda - uma série de elegantes monólogos do bem-sucedido advogado de defesa parisiense Jean-Baptiste Clemence. A história de Clemence equivale a uma confissão: toda uma vida dedicada a ajudar os fracos e oprimidos se desmancha na hipocrisia complacente de ações realizadas para sua exclusiva satisfação. Em 1957 (No mesmo ano da publicação de seu livro de contos O Exílio e o Reino), aos 44 anos de idade, Camus ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Aproximadamente três anos depois, seu filho falece e, posteriormente, Camus morre no dia 4 de Janeiro de 1960, num acidente de automóvel, nos arredores da cidade de Sens, na França.



A obra de Camus é grandiosa, magnífica, além do absurdo, Camus nos mostra a revolta, cada um associado a um mito grego, Sísifo o absurdo e Prometeu a revolta, Entre a minha preferidas, além do “O Estrangeiro”, esta “A peste”, uma alegoria ao nazismo e por extensão uma crítica a todo regime totalitário. “O Homem Revoltado”, é aquele homem que diz não a tudo o que força seus limites, a tudo que o violenta e o priva de exercer livremente o que considera seus direitos, mas sabe também que sua revolta deve respeitar alguns limites. Jean Paul Sartre (filósofo existencialista francês), não gostou do homem revoltado, é que para Sartre só existia o homem revolucionário, mas este fato, suas amizades e desavenças é outra história.
Jaime


"Penso agora em flores, sorrisos, desejo de mulher, e compreendo que todo o meu horror de morrer está contido em meu ciúme de vida. Sinto ciúme daqueles que virão e para os quais as flores e o desejo de mulher terão todo o seu sentido de carne e de sangue. Sou invejoso porque amo demais a vida para não ser egoísta... Quero suportar minha lucidez até o fim e contemplar minha morte com toda a exuberância de meu ciúme e de meu horror."
Albert Camus

segunda-feira, 13 de junho de 2011

.

TRANSGRESSOR (O ser social)

Alguns só falam em negócios
Ou sobre putas
Ou sobre o ócio
Eu além disso falo da rima
Sobre a métrica
Metáforas e dialéticas.

Alguns são confrarias
Prato e bispote
Esbornias e faloforias
Eu sou o DNA que envenena
Um maluco transgressôr
A maldição da eugenia

Tudo é a confusão
Do perfeito mundo imperfeito
Um diz sim outro diz não
O que resulta é a procura
Uns de só o viver
Outros de entender a loucura.

Para o meu eu arredio - Jaime

sábado, 30 de abril de 2011

MUTAÇÃO

O vento brando
Do Morro das Mortes
Entravam em minha janela
Aeolus em tom de prosa
Tocava os cristais da porta
Numa música silenciosa.

Num repente
Da brisa suave o revés
Tudo enfurece
Com raios fuzilando
Em noites loucas de dormir
Ou então ficar vagando.

Vendavais que me embalam
Torvelinhos
Coriscos
Que iluminam a praça
Transformam-me em fantasma
Um espectro na vidraça.

Eu a beira do vento
O Morro das Mortes me chama
Loucos Deuses
Loucos ventos
Loucos
Eu e o tempo.

A loucura e o fascinio de observar temporais e o outeiro iluminado pelos raios, Morro das Mortes, primeiro nome do meu pequeno município, diante do quadro lembrei Clarice, numa noite de bruxas. – Jaime Baghá

* “Eu a beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama”, Clarice Lispector. Para além da orelha existe um som...




Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.
À ponta do lápis o traço.
Onde expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.
Na ponta dos pés o salto.
Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.
Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? eu vos espero. E para lá que eu vou.
Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que eu vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio.
Não sei sobre o que estou falando. Estou falando de nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.
É para o meu pobre nome que vou.
E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.
À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.
Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.
Oh, cachorro, cadê tua alma? está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente.
Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós.

Clarice Lispector

sexta-feira, 22 de abril de 2011




A onda de protestos e mobilizações populares nos países do Oriente Médio foi como um jogo de dominó, passando de país para país e traz consigo grandes mudanças. Mostra o basta do sofrimento de um povo contra os regimes autoritários, em especial os jovens muçulmanos que gritam por liberdade, democracia, equidade e justiça social e dita uma reconfiguração da geopolítica regional, que ao que tudo indica, desloca dos centros de poder a influência dos EUA nestas regiões e anuncia a formação de um novo bloco, em jogo a exploração comercial do petróleo que traz implicações enormes para a ordem global. Muito atento a estes acontecimentos, o que mais me chamou atenção foi a matéria que o jornalista Diego Viana fez sobre o jovem tunisiano Moahamed Bouazizi, que colocou fogo no seu próprio corpo como forma de protesto (um ato parecido com o monge budista Thich Quang Dúrc em Saigon no Vietnã em 1963), por sua perspectiva de vida sem futuro, igual a milhares de jovens tunisianos que perderam a dignidade por falta de perspectivas e pela política cruel que o seu governo fazia com o povo. O ato levou a queda do ditador Ben Ali e daí por diante vimos o efeito e o começo da história. A seguir a matéria que gostei muito e repasso a vocês.
Jaime Bagha

“Nem Assange, o indiscreto hacker australiano. Nem Zuckerberg, o ainda mais indiscretoempresário precoce da rede, como quis a revista Time. Nem Suárez, o goleiro fugaz dos pampas, sobre o qual ainda hei de escrever. O maior herói de 2010 foi um vendedor de frutas, ambulante e sem licença, natural de Sidi Bouzid, no interior da Tunísia. Chamava-se Mohamed Bouazizi e tinha 26 anos quando morreu.

O gesto heróico de Bouazizi foi um martírio que, em si, não tem nada de novo, mas sempre impressiona. No Vietnã de 1963, Thích Quảng Đức desceu do convento e, com toda a calma que se espera de um monge budista, imolou-se na praça mais movimentada de Saigon. Kennedy admitiu que a imagem daquele corpo se consumindo abalou o mundo. Na Tchecoslováquia de 1969, Jan Palach, estudante de filosofia, escolheu que sua existência não passaria dos 21 anos. De que valia viver sob o jugo soviético? Em 1989, a celebração de sua memória desaguaria na Revolução de Veludo, batendo um cravo no caixão da Cortina de Ferro.

É perturbador, mas parece que morrer dá resultado.
Algo na morte de Bouazizi é diferente. Talvez porque ele nem era um religioso preparado para o outro mundo, nem fez um pacto, como Palach, aliás descumprido por quase todos os colegas. Na manhã do dia em que se incendiou, Bouazizi não queria morrer, queria trabalhar. Teria preferido a dignidade de exercer sua profissão, era técnico em informática, mas se a ditadura tunisiana não lhe oferecia as condições econômicas para isso, sujeitava-se a vender frutas sem licença.
Nem isso a ditadura tunisiana lhe concederia. Tampouco a dignidade de ser abordado respeitosamente pela polícia. Bouazizi morreu porque não podia trabalhar, não podia sobreviver e não podia aceitar a humilhação de levar uma bofetada diante do confisco de sua mercadoria. O que ele tinha para pensar? Que espaço sobrava para a reflexão? Seu único recurso era o imediato. Diante da prefeitura, o fogo.

Daí por diante, a história é conhecida. Os tunisianos se sublevaram, 400 foram massacrados pela polícia, mas o ditador Ben Ali caiu. Os egípcios passaram dezoito dias ao ar livre, apanhando de capangas da tirania e suportando um discurso vacilante do poder apodrecido. Mas o ditador Mubarak caiu (vamos ver o que acontece com o regime como um todo).
Apesar dos protestos em uma dúzia de países árabes, nada indica que outros cairão. Mas quem sabe? A energia coletiva se transmite em ondas, numa vibração que se expande quase sem dar na vista. Spinoza já dizia, Tarde já dizia, Deleuze já dizia, deveria ser óbvio por agora. Talvez todos os árabes consigam sua democracia, ou então serão massacrados mais uma vez.
Aos historiadores: olho nos jornalistas.

Mas voltando a Mohamed Bouazizi: o que seu suicídio tem de único é que foi um gesto de transbordamento de vida. Coisa de quem tinha o caos dentro de si para gerar uma estrela. Ou uma revolução.

Pode parecer paradoxal, mas é o aspecto mais belo da história contada na África em 2011. Bouazizi foi quase um herói nietzschiano. Bouazizi morreu porque sua vida não cabia na lata de sardinha que a tirania lhe oferecia. Ele não sabia disso, como o sabiam ou ao menos intuíam seus antecessores vietnamita e tcheco. Sua vida vibrava de dentro para fora. Humilhação, frustração, aniquilamento, não eram para ele.

A rigor, não são para ninguém. Mas foi necessária a explosão de uma vida para incendiar centenas de milhões de outras almas, filhas, netas e bisnetas de gente que até então não conheciam muitas outras palavras a fundo. Só humilhação, frustração, aniquilamento. Bouazizi morreu e infundiu vida em quem estava amortecido. Foi o funâmbulo que caiu, mas cuja multidão, no lugar de humilhá-lo, absorveu a matéria carbonizada de seu corpo e partiu para mudar o mundo. Outros morreram, mas nada mais poderia pará-los: impossível morrer mais do que o primeiro herói.
Todo mundo se lembra de Nietzsche quando um maluco qualquer, um Raskolnikov afásico nos cafundós da América profunda, se toma por um “super-homem” com espinhas e sai metralhando por aí porque se acredita “acima” do bem e do mal. Mas a hora de lembrar de Nietzsche, na verdade, é agora. Como Zaratustra (na versão do filólogo alemão), Mohamed Bouazizi morreu abraçando a terra.
Alguém poderia objetar que a terra de Zaratustra era a matéria de que somos feitos, nossa argila, nossa carne. Mas a terra que o Bouazizi moribundo abraçou também era dessa terra. Era o pó de que viemos e para o qual voltaremos. Era sua terra. Das montanhas de Atlas ao delta do Nilo, do Saara à costa do Mediterrâneo. Todo esse território de história milenar adquiriu vida como os gigantes cadmeus, depois que foi abraçado pelo rapaz a quem não deixariam viver, então de presto, desafiador, não viveu.
Mas morreu em nome da vida. Nem que fosse a vida dos outros.”


Carta de Bouazizi para sua mãe


"Estou viajando mãe. Perdoe-me. Reprovação e culpa não vão ser úteis. Estou perdido e está fora das minhas mãos. Perdoe-me se não fiz como você disse e desobedeci suas ordens. Culpe a era em que vivemos, não me culpe. Agora vou e não vou voltar. Repare que eu não chorei e não caíram lágrimas de meus olhos. Não há mais espaço para reprovações ou culpa nessa época de traição na terra do povo. Não estou me sentindo normal e nem no meu estado certo. Estou viajando e peço a quem conduz a viagem esquecer."
—Mohamed Bouazizi

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

EU

Não destilo a finitude humana

Não descrevo elegias

Ou salto como um éros lúbrico

Satisfazendo o rebanho.

Sou a rebeldia de um Goya

E suas pinturas negras

Um becketiano no absurdo.

Odeio padrões pré-estabelecidos

A afeição do meio

Existe muita dor e danação

Na curta existência

Para que eu fique alheio

Aos arquétipos criados

Pelo social e suas máscaras.

Pela minha solidão nas multidões e pelas minhas bebidas em festas e reuniões para que as pessoas possam ficar mais interessantes. Jaime

domingo, 16 de janeiro de 2011



O poeta e dramaturgo Ferreira Gullar é o ganhador do Prêmio Luis de Camões 2010, o mais importante prêmio literário da Comunidade de Países de Lingua Portuguesa (CPLP). Gullar tem uma extensa obra de poesias, crônicas, ficção, memórias, biografias, ensaios e teatros. Uma das minhas poesias preferidas é “Traduzir-se”, a qual foi extraido do livro “Vertigem do Dia”, e gravado por Raimundo Fagner na Espanha em 1981, num disco do mesmo título que foi um marco na carreira do cantor, anteriormente, Traduzir-se foi registrado no disco “Romance Popular” de Nara Leão



terça-feira, 11 de janeiro de 2011


1968

Em 1968, o mundo pegou fogo em todos os sentidos, não só no figurado. Esse ano mítico incendiou corações e mentes, explodiu em canções, filmes, passeatas, revoluções e guerras, nos campos de batalha e nas ruas, nos palcos e nas telas, na política, no imaginário e no comportamento das pessoas.Um frêmito percorreu o planeta, foi, como se disse naquela época, um “êxtase da História”.
Talvez o emblema maior dessa ebulição tenha sido o maio francês, como tudo o que ocorreu naquele mês em que os estudantes viraram Paris de cabeça para baixo, retirando as pedras do chão com as quais abalaram simbólicamente e literalmente o governo do lendário general De Gaulle, herói da guerra e monumento nacional. Anárquicos e utópicos os estudantes franceses contestaram todas as instituições, da escola ao princípio de autoridade, das relações familiares as sexuais, das roupas corte de cabelo. Além das barricadas, dos postes arrancados e dos enfrentamentos com a polícia, que causaram centenas de feridos, “les événements de mai” foram também uma guerra verbal. Nas paredes e muros, os jovens escreveram suas palavras de ordem e seu ideário: “É proibido proibir”. “A imaginação no poder”, “Seja realista, exija o impossível”. Porque, para eles, nada era impossível, das utopias as aventuras espaciais. O sonho de maio francês espalhou-se e uma onda de protestos varreu outros países do Ocidente.
Na Checoslováquia, a Primavera de Praga, um anseio de “socialismo com face humana”, acabou esmagada pelos soldados soviéticos. A resistência foi heróica e românica, com jovens enfrentando os tanques de peito aberto ou arrancando as placas das ruas para desorientar os invasores. Os protestos de rua perpassaram a Europa e chegaram até o Oriente.
No Japão, as manifestações estudantis e a repressão policial foram especialmentes violentas. Os ventos da contestação atingiram igualmente as Américas, de alto a baixo. Nos Estados Unidos, o movimento dos direitos civis de Martin Luther King, por um lado, o Black Power, por outro, e os hippies por toda a parte propondo sexo, drogas e rock’n’roll, agravaram a crise provocada pelo fracasso das tropas americanas no Vietnã.
No campo artístico, Janis Joplin, Jimni Hendrix, Bob Dylan e Joan Baez funcionavam como os acordes dissonantes, fazendo coro a subversão sonora que vinha de fora com os Beatles e os Rolling Stones. Essa misteriosa sincronia, que juntava jovens de nações e sistemas tão diferentes em torno de anseios e ideias comuns, se manifestou de maneira particular em países da América Latina, como o México, onde a repressão policial produziu um sangrento espetáculo de violência coletiva.
No Brasil, uma ditadura militar que se instalara em 1964 canalizou contra ele a rebeldia e a resistência dos estudantes. Em lugar da “sociedade de consumo”, do “sistema”, os jovens daqui tinham um inimigo mas concreto, que censurava, prendia e passou a torturar e matar. O ano que se caracterizou por memoráveis manifestações de rua, acabou com um sinistro ato, o AI-5, que cancelou todas as liberdades públicas. Nem por isso, os jovens daqui e de outras partes deixaram de lutar por seus sonhos e utopias, alguns dos quais a humanidade realizaria em seguida, como a odisseia no espaço que foi a conquista da Lua.

Do livro de Zuenir Ventura, “1968, o Ano que Não Terminou”.



Imagens do cartaz da esquerda p/direita: 01-AI-5; 02-Augusto Boal; 03-Caetano Veloso; 04-Chico Buarque; 05-Ferreira Gullar; 06-Gilberto Gil; 07-Bombas de Napalm Vietnã; 08-Janis Joplin; 09-Jimi Hendrix; 10-Joan Baez e Bob Dylan; 11-Vladimir Herzog; 12-Jose Celso Martinez; 13-Estudantes em protestos nas ruas de Paris; 14-Mather Luther King; 15-A foto considerada marco que mudou e virou a opinião pública americana sobre a Guerra do Vietnã; 16-Uma Odisséia no Espaço (filme); 17-Movimento Hippie, a revolução dos costumes sobre as lentes do Hair; 18-The Beatles; 19-Revolução estudantil, maio 1968 ruas de Paris; 20-Manifestação popular R.Janeiro contra ditadura; 21-Homem na Lua; 22-Passeata conta a ditadura no R.Janeiro em junho de 1968- Da dir. para esq. Carlos Scliar, Clarice Lispector, Oscar Niemayer, Glauce Rocha, Ziraldo e Milton Nascimento; 23-Plinio Marcos; 24-Primavera de Praga, 25-A passeata dos 100 mil em 1968, manifestação popular de protesto conta a ditadura no Brasil.

A ÚLTIMA UTOPIA

Podemos pregar paz e amor, protestar contra as guerras, contra o racismo, clamar pelos direitos civis, podemos exigir direitos iguais às mulheres, respeito aos homossexuais, podemos incendiar as ruas em busca de nossos direitos e gritar contra o poder e suas situações indesejadas. De 1968 até hoje se passaram 43 anos e este senso crítico que incendiou uma geração bem que poderia ter um número maior de adeptos nos dias de hoje, necessitamos de opiniões mais reinvidicativas e que não fiquem alheio a tantas situações.

O planeta sofre uma série de problemas causadas pelo homem: poluição, queimadas, pescas predatórias, guerras e sua ganância de lucro a qualquer custo, o poder não necessita mais de repressão, políticos podem ser corruptos, roubar, aumentar seus salários ao bel-prazer, contando ainda com a complacência e a parceria da justiça. Houve uma influência e uma manipulação muito forte pela mídia e o consumo, as músicas foram capitalizadas, as artes muitas vezes é uma ópera bufa, todo tipo de asneira agora vira sucesso e o ridículo virou “celebridade” (palavrinha infecta). Perdemos muito do senso crítico.

Hoje temos o mundo diante dos nossos olhos através da internet, um instrumento poderoso que é usado quase que exclusivamente para mostrar basbaquices e “vantagens” com a intenção de aparecer a qualquer custo, e tristemente se tem lucro com isso, pois, a massa de emergentes formada pela plebe do mau gosto, despolitizada e desinformada, paga por isso. Sendo assim, o que era para ser uma grande tecnologia, acaba sendo transformada num moto-contínuo da imbecilização. Salva-se uma minoria que acreditou ser ouvida, hoje o jovem que tem senso político, ecológico e humanista é um chato, resume-se em pequenos grupos oriundos de famílias educadas e com tradição pela cultura.

Somos a utopia em busca da perfeição e enquanto existir um ser humano ele vai lutar, não adianta esperar o que dizia a música do “Hair”, “When the moon is in theseventh house, and júpiter aligns with mars, then peace will guide the planet, and love will steer the stars”, cuja tradução é “Quando a lua estiver na sétima casa, e júpiter se alinhar com marte, então a paz guiará os planetas e o amor dirigirá as estrelas”, que segundo os cálculos só acontecerá no ano 2600, já ouvi esta história e foi muito bonita, mas o que influenciou mesmo, não foi a lua ou o alinhamento dos planetas, e sim uma nova mudanças de atitudes e o que percebemos atualmente é que a mensagem da geração de 1968 está sendo esquecida.

Jaime

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011


Jaime e Maneca nos ventos do Santa Marta
Farol de Santa Marta/SC - 1987.


VENTOS

Meninos que corriam
Contra os ventos
Riam
Voavam
Desafiando o tempo.

Deslizavam em meu rosto
Os ventos
Sul
Chuva fina
Na vidraça da água furtada
Minuanos.

Hoje El Niños
La Niña
Cruzam meus caminhos
Tatuando meu rosto
Pelo tempo
Pelos ventos.

Nos alcantis de Torres
Olhando o mar
Recordo o menino
De alegre volitar
Os ventos continuam
Eu
Lento caminhar.

E as asas?
Ora, para que as asas
Se conheço os alísios
De tanto olhar.

Eu era um dos meninos que corriam contra os ventos minuanos, sem importar-se com o frio
Ou com o futuro. Hoje nos rochedos dos mares do sul, sinto os ventos, com saudades da in—
fância e feliz por atravessar as mudanças e traduzir em poesia os caminhos percorridos.
Creio que estes belos instantes são o verdadeiro significado da vida.

Jaime